quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

A guerra contra o Estado Islâmico

Depois dos atentados terroristas em Paris, as potências atacam – mas bombas não serão suficientes para anular o grupo terrorista

RODRIGO TURRER E TERESA PEROSA
19/11/2015

Por mais de sete horas, os moradores de Saint-Denis, um subúrbio ao norte de Paris, viveram na quarta-feira (18) o incômodo de ter oterror por perto. Acharam que seria a reprise em menor escala da terrível noite da sexta-feira, dia 13, quando terroristas do Estado Islâmico atacaram diversos pontos da cidade – inclusive as cercanias do Stade de France, em Saint-Denis. Poderia ter sido, mas não foi. Uma megaoperação da polícia francesa no bairro desmantelou uma célula terrorista do Estado Islâmico, disparou mais de 5 mil tiros, prendeu oito suspeitos e deixou dois mortos – entre eles o belga Abdelhamid Abaaoud, apontado como mentor dos atentados. O serviço de inteligência francês chegou a Saint-Denis porque descobriu, pelos celulares dos terroristas mortos na sexta-feira, que o grupo planejava novos ataques a Paris. Havia suspeitas de atentados também na Alemanha. A confirmação de que o Estado Islâmico está por trás dos ataques comprova a mudança de estratégia do grupo. O EI declarou guerra e promete mais ataques ao Ocidente.

Desde a fundação do que chama de califado, em junho de 2014, o grupo jihadista concentrou seus esforços na construção de um Estado de fato, conquistando territórios da Síria e do Iraque. Quando tomou Mossul, a segunda maior cidade do Iraque, o EI declarou terminadas as fronteiras determinadas pelo acordo de Sykes-Picot, o infame arranjo de 1916 pelo qual Inglaterra e França dividiram previamente o espólio do Império Otomano. O EI é assim. Fala em reconstruir o “califado”, uma entidade do século VII, pratica violência local com padrões cruéis da Antiguidade, como decapitações, crucificações, assassinatos em massa, estupro de mulheres e  escravidão, comete achaques financeiros. Tem predileção por simbolismos e resgates históricos de uma ignorância atroz, como a destruição de monumentos e patrimônios da humanidade, como a antiga cidade assíria de Nimrod, no Iraque, e Palmira, na Síria.
Até os ataques da semana passada, o EI estava interessado em expandir seu território e demonstrar às populações que domina e aos potenciais recrutas sua capacidade de governar. Agora quer intimidar o Ocidente. Em duas semanas, o EI reivindicou três grandes atentados: a derrubada do voo 9268 da Metrojet no Egito, os ataques suicidas em Beirute, capital do Líbano, e os massacres em Paris. Ao assumir os atentados, em 14 de novembro, o EI declarou que aquele seria “o primeiro de uma tempestade”.  “É uma mudança brutal na estratégia do EI”, escreveu William McCants, diretor do Projeto para Relações dos Estados Unidos com o Mundo Islâmico da Brookings Institution e autor de um livro sobre o Estado Islâmico. “Antes eles estavam interessados apenas em inspirar ataques, atrair jovens para a Síria e o Iraque e depois deixar que eles conduzissem os atentados por conta própria”, diz McCants. “Agora, estão interessados em conduzir operações fora de seu território.”
Por que um grupo que em menos de um ano fundou um “califado” e tomou para si um território de 95.000 quilômetros quadrados (quase o tamanho de Santa Catarina) estaria interessado em ataques suicidas e assassinatos de civis? Assim como tudo no Estado Islâmico, esse ponto de virada ainda está envolto em mistério. Para alguns analistas, o Estado Islâmico acusou o golpe. Os bombardeios da coalizão liderada pelos Estados Unidos teriam provocado danos cruciais à logística do EI, e feito o grupo perder em torno de 10% de seu território. “O Daesh (acrônimo árabe para Estado Islâmico) perdeu território de forma contínua nos últimos dois meses e, por isso, precisou reagir”, afirma Michael Knights, especialista em segurança no Oriente Médio do Washington Institute. “A coalizão conseguiu vitórias, retirando pequenos pedaços de território do EI, mas ferindo gravemente sua logística.”
A busca obsessiva pela construção de um Estado faz parte do messianismo apocalíptico do Estado Islâmico. A crença no fim do mundo está no DNA do EI desde que o jordaniano Abu Musab al-Zarqawi começou a formular a identidade do grupo, em 2004. Seus sucessores levaram ao máximo a convicção de que o apocalipse está próximo. Sob o comando do iraquiano Abu Bakr al-Baghdadi, o atual “califa”, os líderes do Estado Islâmico consolidaram essa crença no fim do mundo. “Para eles, o julgamento final seria anunciado pelo renascimento do califado, que seria o prenúncio de uma batalha épica entre os jihadistas e os ‘infiéis”’, afirma Bernard Haykel, professor de estudos do Oriente Médio na Universidade Princeton. Após a vitória islâmica, a ser comandada pela figura mítica do mahdi, viria o apocalipse. “Nesse sentido, atrair os infiéis para seu território e começar uma batalha é essencial para reafirmar a tese dos jihadistas sobre a necessidade de os muçulmanos se unirem.” Como no caso da al-Qaeda, de Osama bin Laden, a matéria-prima do EI é uma visão distorcida do islamismo.
Qualquer que seja o plano, o Estado Islâmico conseguiu atrair atenção. No dia seguinte aos atentados, após declarações duras do presidente da França, François Hollande, a França passou a despejar bombas no EI em profusão. Desde a semana passada, os habitantes que permanecem em Raqqa, no norte da Síria, acordam ao som dos caças Rafale e Mirage sobrevoando e bombardeando a área, capital de fato do autoproclamado califado. Hollande promete continuar com as investidas. “A França destruirá o Daesh”, anunciou. Os bombardeios a Raqqa se seguiram durante a semana – em três dias de incursões, 33 militantes do EI morreram.
Há a possibilidade iminente do envolvimento de outros países ocidentais. A França invocou pela primeira vez na história da União Europeia a cláusula que dispõe sobre defesa mútua, conclamando os vizinhos a se juntar a seu esforço de guerra. Todos se dispuseram a auxiliar. Os Estados Unidos prometeram a partir de agora compartilhar informações de inteligência sobre o EI com as autoridades francesas. A Rússia de Vladimir Putin, que até há pouco usava o EI como pretexto para bombardear rebeldes sírios e ajudar o ditador Bashar al-Assad, se converteu em rápida aliada francesa. Pela primeira vez em 70 anos, França e Rússia atuaram como aliadas militares: caças russos bombardearam Raqqa – além, claro, para não perder a viagem, dos grupos rebeldes que enfrentam as tropas de Assad. A Rússia planeja inclusive enviar tropas por terra.
O bombardeio, e a esperada reação militar mais ampla no território do Estado Islâmico, enterra de vez as ilusões de um Ocidente que não teria de lidar diretamente com os efeitos da guerra civil síria e da expansão do Estado Islâmico. A Europa já passa por um choque de realidade desde o ano passado, quando a onda de refugiados que escapam da violência cotidiana imposta pelo grupo e por Bashar al-Assad chegou às praias gregas e desde então só faz aumentar. Se a questão da solução política para o conflito sírio já se impunha, lideranças europeias e americanas são compelidas agora a resolver também o problema do Estado Islâmico. Os analistas são unânimes em dizer que não há receita para vencer o grupo – e não há apenas um front nessa batalha. “É preciso agir em três frentes, todas com a mesma importância”, afirma Audrey Kurth Cronin, diretora do Programa de Segurança Internacional da Universidade George Mason. “Hoje, é preciso uma intervenção militar para combater o EI em seu território, é preciso focar em segurança para lidar com os estrangeiros do EI e evitar novos atentados e, o mais importante, descobrir como atuar para eliminar a ideologia do Estado Islâmico.”
Bombas não serão suficientes Para vencer o Estado Islâmico. É preciso agir em várias frentes"
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Em junho, o analista de estratégia militar David Killcullen, ex-assessor do comando americano no Iraque entre 2005 e 2006, alertou que a campanha aérea da coalizão liderada pelo Estados Unidos precisaria mudar de estratégia se quisesse de fato impedir a expansão do EI. “Os tipos de alvo que estão sendo atingidos são, frequentemente, ativos militares táticos de baixo nível. Nós não vimos ainda o tipo de estratégia aérea ofensiva que seria necessário para enfrentar o Estado Islâmico como uma entidade semelhante a um Estado – diferente de meramente danificar suas capacidades militares”, escreveu Killcullen. “Eu não vejo alternativa senão uma guerra convencional ao EI maior e mais intensa.” Depois de Paris, essa reavaliação está na mesa das potências.
Embora os governos obviamente não devam reconhecer o EI como um Estado de verdade, precisam levar em conta que, em sua campanha, o grupo conseguiu adquirir estruturas estatais, parcialmente responsáveis por seu sucesso. Além disso, por ter em seu alto comando oficiais do antigo regime de Saddam Hussein, o Estado Islâmico tem um planejamento estratégico bem delineado. Ao contrário de grupos como a al-Qaeda, que contavam com o apoio de grandes doadores, por vezes estatais, o EI foi capaz de diversificar suas fontes de renda para assegurar financiamento constante.
Hoje, o EI controla dez campos de petróleo em seu território e vende o produto no mercado negro, faturando em média US$ 1,5 milhão por dia. “Levando em conta o fracasso da al-Qaeda (em sua habilidade de conseguir uma fonte de financiamento regular), o EI redefiniu um modelo de negócios estratégico para administrar seu projeto terrorista”, escreveu em artigo Christina Schori Liang, do Centro de Política de Segurança de Genebra (GCSP, na sigla em inglês). Somam-se a isso os impostos cobrados dos cerca de 10 milhões de pessoas que vivem em território sob seu controle, além da tomada de bancos estatais e privados da cidade de Mossul, que rendeu ao grupo entre US$ 500 milhões e US$ 1 bilhão. Há evidência também de tráfico de antiguidades, que passaram a aparecer em grandes quantidades no mercado informal e em sites de venda on-line depois que o EI conquistou sítios arqueológicos como Nimrud e Hatra, na Síria. Com a abundância de dinheiro, o Estado Islâmico ainda tem uma vantagem competitiva em termos de atração de combatentes em relação a outros grupos, como o Jabhat al-Nusra e o Exército Livre da Síria, pois oferece salários e compensações maiores.
Ainda assim, uma ação militar de alta escala com tropas em campo, por parte dos países europeus e dos Estados Unidos, é pouco provável. “Não há planos sérios para grandes tropas estrangeiras na Síria. Essa luta será vencida ou perdida por tropas locais fortemente apoiadas pelo Ocidente”, diz Patrick Skinner, diretor do Soufan Group. Os traumas das invasões ao Afeganistão e ao Iraque, fundamentalmente o terreno fértil que fomentou a crise atual, tendem a impedir um engajamento mais amplo por americanos e aliados. Na quinta-feira que precedeu os ataques em Paris, o presidente americano, Barack Obama, afirmara que o Estado Islâmico “estava contido”. O timing foi infeliz, mas a verdade é que Obama não está completamente incorreto. Na véspera dos ataques, não só o militante do Reino Unido conhecido como Jihadi John havia sido morto em um ataque americano, como o grupo havia perdido o controle sobre a província do Sinjar, rota vital entre Raqqa e Mossul, para a Peshmerga Curda, um grupo que defende o território curdo no norte do Iraque e da Síria.
Se em termos geopolíticos o EI pode estar, nas palavras de Obama, “contido”, sua habilidade mais tóxica – a capacidade de espalhar o ideário de ódio e violência – não sofreu arranhões. “O que a propaganda do Estado Islâmico mais explora é a ideia de que muçulmanos não são bem-vindos no Ocidente, que os muçulmanos estão em guerra com o Ocidente. É como se tivéssemos uma minoria falando pela maioria da comunidade islâmica”, diz Nikita Malik, da Fundação Quilliam, especializada em pesquisa e ações antiextremistas. Essa retórica radical é particularmente persuasiva e sedutora para jovens, muitas vezes criados em famílias não religiosas, tomados por sentimentos de inadequação, alienação e busca por identidade em sociedades com problemas para integrá-los. “Heroísmo” e “vontade de participar de algo com sentido” também são frequentemente elencados como elementos que atraem esses indivíduos a um grupo radical. Hoje, só os países da Europa Ocidental têm pelo menos 4 mil cidadãos combatendo como jihadistas do EI na Síria, sintoma do poder de atração das ideias defendidas pelo grupo.
Além disso, com as redes sociais e a máquina de propaganda do EI, indivíduos têm acesso a materiais de incitação ao radicalismo e à violência extremista sem sair de casa. “A al-Qaeda e o Taleban necessitavam que os indivíduos viajassem. O Taleban tinha campos no Afeganistão para doutrinar para a causa. Eles exibiam vídeos de muçulmanos sendo maltratados, para alimentar seus sentimentos de injustiça e raiva. Com a disponibilidade de material on-line, essa jornada não é mais necessária”, diz Malik. “Indivíduos podem se radicalizar on-line. As técnicas são diferentes e, de certa forma, mais eficazes, porque você tem acesso a mais recrutas.”
Publicado na semana passada, o relatório Índice de Terrorismo Global (GTI, na sigla em inglês) oferece algumas pistas de como o problema pode ser combatido. “Quando estamos falando de combate ao terrorismo, as pessoas pensam em resposta militar. O que nosso estudo sugere é que nós precisamos olhar mais amplamente para o que está levando as pessoas para os grupos terroristas”, afirma Aubrey Fox, diretor do Instituto para a Paz e Economia, entidade americana responsável pela publicação. Com base em um estudo de 2010, o GTI disseca as razões pelas quais mais de 2 mil indivíduos deixaram seus países para se juntar à al-Qaeda, um movimento similar ao dos 20 mil estrangeiros que estão na Síria e no Iraque junto ao EI. Listada em primeiro lugar, com 40% das respostas, está “busca por identidade”. Para Fox, atuar junto a esses indivíduos e grupos alienados é fundamental para uma atuação efetiva no manancial de recrutas para grupos terroristas. “Nós precisamos focar em políticas de prevenção de violência em médio e longo prazo em locais problemáticos”, diz Fox.
Três semanas depois do ataque de janeiro, o governo francês lançou o site Stop Djihadism, uma tentativa de canalizar os esforços contra o radicalismo. A iniciativa oferece cartilhas e orientações de como se portar caso alguém próximo dê indicativos de que está se enveredando pelo caminho do extremismo e disponibiliza uma linha telefônica de denúncia, de pedido de ajuda para as famílias. Ainda assim, trata-se de uma iniciativa tímida se comparada aos imensos desafios impostos pela atração de jovens pela ideologia radical do EI. Reino Unido e Alemanha têm programas para atuar junto a grupos suscetíveis e prevenir o recrutamento.
No caso dos recrutas advindos da Síria e do Iraque, a persuasão é fortemente alimentada pelas condições locais. Em momentos como este, após a carnificina em Paris, é fácil esquecer que a maioria das vítimas do terror em geral e do Estado Islâmico, especificamente, está no Oriente Médio. “Em países não ocidentais, as causas (do terrorismo e da adesão ao EI) são bastante óbvias: eles estão dilapidados por conflitos internos, guerras civis, presos em ciclos de caos e violência. A causa é a violência. Isso sugere um conjunto de soluções muito difíceis. Mas, mais uma vez, não pode ser só uma solução militar”, afirma Fox, ecoando os pedidos para uma saída também política para os conflitos na região. Que o Estado Islâmico sofrerá duras consequências no campo de batalha depois dos atentados da semana passada não há dúvida. Os tanques e bombas são capazes de conter seu avanço territorial. Mas a guerra final, a que disputa corações e mentes, apenas começou e é travada em cada bairro – não só de Raqqa ou Mossul, mas de Paris, Londres, Berlim...

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