sábado, 28 de maio de 2016

Paul Kagame, presidente de Ruanda, reconstrói o país à sua imagem

O presidente Paul Kagame, da Ruanda

Em Kigali, a ordeira capital de Ruanda, a sensação é a de que nada se move sem autorização de Paul Kagame.

Na corrida do aeroporto ao centro, não se vê uma folha nas palmeiras ou uma flor nos intrincados arranjos florais fora do lugar. Não há favelas nas colinas, lixo no pavimento ou camelôs nas ruas. O trânsito é ordeiro, os policiais são educados, e os motociclistas usam capacetes, apesar do calor.

Como a Cingapura de Lee Kuan Yew, Ruanda está sendo reconstruída à imagem de Kagame.

Antigo guerrilheiro que liderou as forças que invadiram o país para acabar com o genocídio em 1994, ele comanda seu minúsculo país como um severo diretor de escola. Da mesma maneira que Cingapura em seus anos iniciais, Ruanda é uma experiência curiosa.
Ed Cropley - 11.mai.2016/Reuters
Homem caminha na capital de Ruanda, Kigali

Como Lee, morto em 2015, Kagame é um dos líderes mais intrigantes do planeta. Magérrimo, racional e (geralmente) falando baixinho, ele é descrito como um homem sábio como Salomão, mas implacável como Saddam Hussein.

Anjan Sundaram, escritor que não é fã daquilo que vê como um regime repressivo, quase orwelliano, escreveu que "a coisa que é preciso saber sobre o presidente ruandês Paul Kagame é não só que ele é um ditador responsável por abusos contra os direitos humanos mas que, apesar disso, conta com muitos grandes amigos".
De fato, Ruanda é um país muito querido por uma comunidade internacional ansiosa por histórias de sucesso na África. Kagame conquistou elogios robustos de amigos como Tony Blair e Bill Clinton, que o definiu como "um dos grandes homens de nossa era".

Este mês, Ruanda voltou a ser aclamada quando o Fórum Econômico Mundial optou por realizar em Kigali o seu evento anual. Os organizadores afirmaram que, na África Oriental, apenas a minúscula Ruanda contava com as instalações e a capacidade de organização necessárias para sediar essa versão africana do fórum de Davos.

Não é pouco para dizer sobre um país que, há apenas duas décadas, passou por uma das mais horrendas erupções de genocídio da história moderna. Em algumas poucas semanas, mais de 800 mil tutsis e seus simpatizantes na etnia hutu, ou quase 10% da população, foram mortos a golpes de bastão ou facão, por instigação do governo.

Hoje em dia, tutsis e hutus vivem lado a lado em ostensiva harmonia. Por ordem de Kagame, raramente se referem abertamente às suas etnias. O presidente, que é tutsi, quer criar um senso de nacionalidade ruandesa, das cinzas do genocídio. Para a nova Ruanda, 1994 é o ano zero.
Edmund Blair - 26.abr.2014/Reuters
Visão geral da capital de Ruanda, Kigali

ECONOMIA
Além da paz, existe desenvolvimento. A economia vem crescendo em 6% a 8% anuais nos últimos 15 anos, ainda que a população do país também cresça em 2,5% ao ano e cerca de 90% dos ruandeses continuem a ser agricultores de subsistência.

O país conseguiu avanços na saúde, educação e redução da pobreza. Disparou escala acima no ranking de facilidade de negócios do Banco Mundial, em parte porque o presidente criou uma unidade especial com essa missão. Dois terços dos legisladores e mais de metade do gabinete de Kagame são mulheres.
Por esse motivo, a assistência da qual Ruanda ainda depende continua a chegar. Pelo menos, dizem os doadores, o dinheiro será gasto com sabedoria, e não roubado. Hesitantes em macular a reputação de seu aluno modelo, eles não se dispõem a criticar.

Em 2014, o Banco Mundial produziu um primeiro rascunho de relatório sobre o investimento privado em Ruanda no qual questionava a escassez desse tipo de operação, apesar das políticas aparentemente sólidas. O relatório foi primeiro diluído e depois saiu de circulação completamente, provocando resmungos entre os funcionários da instituição no sentido de que Ruanda estava sendo tratada com leniência.

Os doadores suspenderam brevemente sua assistência quando Ruanda foi acusada de apoio aos rebeldes responsáveis por estupros e sequestros de civis na vizinha República Democrática do Congo. Mas em geral mantiveram os olhos fechados. Organizações de defesa dos direitos humanos catalogaram uma série de sequestros, encarceramentos e assassinatos de jornalistas, dissidentes e rivais políticos, tanto dentro de Ruanda quanto fora do país.
Ed Cropley - 11.mai.2016/Reuters
Motociclistas trafegam durante a manhã pela capital de Ruanda, Kigali

Mesmo o desempenho econômico, sobre o qual boa parte da reputação de Ruanda foi construída, está sendo questionado. David Himbara, antigo assessor econômico de Kagame e hoje exilado no Canadá, segundo ele porque teme por sua vida, afirma que os números quanto ao crescimento e a pobreza do país foram manipulados.

Há muitos regimes repressivos africanos que manipulam dados. Ruanda passa sem críticas porque todos, exceto os mais ferrenhos de seus detratores, admitem que a visão de Kagame está dando frutos. Excetuados alguns resmungos em Washington, pouca gente objeta a que se mantenha no posto.
Depois de 22 anos no comando do país, ele voltará a disputar a Presidência este ano.

Lee, primeiro-ministro de Cingapura por 31 anos e figura influente na política do pais por outros 20, usava a "ameaça letal" da tensão racial como justificativa para sua gestão paternalista.

Kagame, o homem que conteve o genocídio, dificilmente precisará invocar o espectro da violência. Como Lee, ele está fazendo com que todo um país se curve à sua vontade. E como Lee, seus obituários o julgarão principalmente com base nos resultados.

Tradução de PAULO MIGLIACCI 

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